Estranho como algumas coisas, seja pelo destino ou por mera arbitrariedade, ficam marcadas como coisas para crianças. É o que acontece, por exemplo, quando qualquer elemento fantasioso entra em uma história ou ainda quando bonecos sobem ao palco. Mas por que isso acontece? Seria a realidade simulada mais adulta do que um assumido “faz de conta”?
Lembro-me que, ano passado, fui assistir a uma versão do Fausto do Christopher Marlowe feita como teatro de bonecos através de uma parceria entre a companhia Mariza Basso Teatro de Formas Animadas, o Teatro de LA Plaza e o Sesi. Embora todos os meios utilizados para divulgar o espetáculo tenham se preocupado em informar de que aquilo se tratava de um “teatro de boneco para adultos”, parece que a eficácia do alerta não foi suficiente. Dezenas de crianças corriam pelos corredores do teatro pouco antes de a sala se abrir... mas tudo bem. Com certeza, as crianças acharam tudo um máximo, principalmente os poucos palavrões e o pecado da luxúria, que subiu ao palco em forma de um pequeno demônio - o que certamente deve ter constrangido alguns dos pais.
De fato, há muito mais para se ver no teatro de bonecos do que se poderia em um primeiro momento pensar. Em primeiro lugar, não vejo muita diferença entre os tipos de histórias que se poderiam contar com bonecos e com atores normais. Pelo contrário, os bonecos abrem um novo universo a ser explorado que vai além da forma humana. Isto certamente é bem mostrado em A trágica história do Doutor Fausto. Além do próprio Fausto, sobem ao palco o Mefistófeles, diversos pequenos demônios, ao mesmo tempo cômicos e repugnantes; uma forma grande e assombrosa de Belzebu, além de outros efeitos só possíveis quando se abandonam as limitações do corpo humano.
Além da história e da poesia levadas ao palco através do texto, salta aos olhos uma boa dose de trabalho artístico na própria confecção dos bonecos, para não falar em sua habilidosa manipulação. Não há uma necessidade de que eles sejam “realistas”. Pelo contrário, às vezes, quanto mais se parecerem com bonecos, melhor será o efeito estético.
Esse é o caso do espetáculo O princípio do espanto, da Companhia Morpheus 12. Uma peça praticamente sem palavras, mas de grande sensibilidade, com apenas um ator/manipulador e um boneco, que não apresenta quaisquer marcas de individualidade. Sua cabeça é uma forma branca, apenas com saliências que indicariam a presença de olhos, nariz e boca. Em suas roupas, também, nada de distintivo. O ator, ao acender uma vela, dá início à peça e o boneco toma vida! Apaixona-se por si mesmo e, enfim, descobre o que de fato é. Sem palavras, ator e boneco transmitem toda uma série de sentimentos como vaidade, amor, medo e... o espanto.
Imaginar o espanto de descobrir qual é a sua própria natureza! É o encontro do boneco com seu manipulador. Como pensar em acariciar a face daquele que lhe dá a vida, os movimentos, as paixões... e, enfim, descobrir sua existência tão frágil quanto a chama de uma vela.
Por enquanto, não tenho mais nada a adicionar. Com certeza, A trágica história do Doutor Fausto e O princípio do espanto são dois espetáculos que valem a pena ser vistos.
Agora, leitor, se você chegou até aqui, então comente!
3 comentários:
Filho, vc tem razão... o teatro de bonecos tem esse estigma de "brincadeira de criança", mas vai mto mais além... Antônio José, "o Judeu", se utilizou desse artifício para "disfarçar" suas críticas à arbitrariedade absurda dos tribunais do santo ofício... imagine só se um ser humano ousasse dizer algumas falas de revolta e indignação que ele colocou com maestria no meio de suas histórias? Era fogueira na hora!!! rs... e no fim eles perseguiram tt ele, e deixaram passar esse detalhe... ñ tem nada q mencione seu trabalho como dramaturgo no seu processo!!! Ele foi julgado por coisas mt pequenas, e imagina como ñ vasculharam a vida dele? Tinha q ser inquisição de português msm!! rsrs
Tem td lá no site agora, as obras digitalizadas e até o processo contra ele! Se vc tiver interesse: http://www.fclar.unesp.br/centrosdeestudos/ojudeu/
Não sabia q vc se interessava tb por teatro de bonecos!!! rs
Bjoss migo, adorei o texto do blog!!!
Álguém pode até dizer que esse assunto é meio complicado para que outras pessoas entendam, mas, se a gente ler com calma, dá prá entender muito bem, ou seja, resumindo, "Teatro de Bonecos" não se limita à crianças! Nós os adultos, costumamos fazer correlações com as palavras, ou seja, criança = boneca, homem = mulher, e assim por diante! Ainda não tive a oportunidade de assistir um espetáculo desses, mas como vc, André, sempre conta as coisas com convicção e entendimento do que está falando e do que viu, então chego à conclusão de que deveríamos ser mais atenciosos quanto ao que lemos, ou melhor, não lemos, pois se pegarmos um jornal e na seção cultural estiver escrito: Hoje Teatro de Bonecos... praticamente nem terminamos de ler a frase, pois já supomos ser programa prá criança!
Parabéns, filho, por mostrar aqui que nem tudo é como a gente pensa que é!!!
Precisamos ser mais curiosos, em se tratando de assuntos culturais!
Vá em frente, continue colocando prá fora tudo o que vc sabe, partilhe com os outros as coisas boas da vida!!!
Beijo!!!
Mamis!!!
Oi pessoal
No meu blog tem um exemplo de teatro "de bonecos", para o público adulto. Trata-se do espetáculo "Maria Farrar" de Bertolt Brecht, que conta a história real, da menina condenada á morte.
http://balaiovariado.blogspot.com/
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