Esta gravação nos leva para mundos em parte bem estranhos a nossa consciência moderna. No tempo em que essa música foi composta, a percepção humana dos tenebrosos recônditos da alma e das nobres alturas de um luminoso mundo mitológico dos espíritos ainda não havia se tornado obscurecida pelo poder do pensamento racional. As atividades dos alquimistas incluíam o confrontamento de seu eu essencial em um processo de meditação, a fase primária do que eles chamavam nigredo, uma “escuridão mais escura que a escuridão”. E uma dessas técnicas de bruxaria envolvia o uso da música e da dança, para estimular as forças da vida, em uma atmosfera que era congenial, mas ao mesmo tempo misteriosa e onírica.
Isso é de grande importância quando nos aventuramos nessas regiões remotas de fantásticas experiências. O melhor jeito de fazê-lo é ouvir repetidamente os trabalhos musicais que nos tocam como algo particularmente sobrenatural, de modo a ganharmos acesso a suas qualidades atemporais. Esse processo pode revelar que danças, fantasias, prelúdios etc., eram concebidos para atuar mais sobre o nível do sonho do que sobre um cientificamente racional ou analítico. É possível entrar em um leve “corpo imaginário”, no qual se ouve e se sente a música – e talvez a dance em acompanhamento.
O mundo do alaúde – A Atlantis musical
Era uma vez um instrumento que – embora tenha sido o instrumento mais importante da Europa por muitos séculos –, da mesma forma que a enigmática cidade de Atlantis, que subitamente afundou no mar com todas suas riquezas e preciosos tesouros, caiu no esquecimento juntamente com toda sua maravilhosa, vital e romântica música: o alaúde.
Nos períodos da Renascença e do Barroco, o som do alaúde deve ter sido quase tão onipresente quanto a música emitida por grandes ou pequenos alto falantes, hoje em dia. Nas ruas, nas cortes, durante as viagens, em câmaras, estalagens e igrejas, nos barbeiros, nas festividades, no banho, a céu aberto, nos encontros secretos dos amantes, no laboratório dos alquimistas... a música do alaúde era ouvida em todos os lugares.
O que era essa música, que tinha tão poderoso efeito e que era tão onipresente?
Acredita-se que os sons delicados e místicos do alaúde poderiam perscrutar “le secret des muses” - o segredo das musas. A música do alaúde penetrava profundamente nos níveis ocultos da consciência. Ela envolvia seus ouvintes em sentimentos de exuberância e melancolia, doçura e simplicidade, de sonho e florescimento erótico; sentimentos de sofrimento, do êxtase e da desilusão amorosa, da alegria ruidosa, da ironia e da seriedade mortal. Ela os transportava para as profundezas desconhecidas da alma. As emoções entorpecidas pela lúgubre, monótona e maçante rotina diária recebiam uma nova e distinta moldura através dessa música. Dela, dizia-se que curava o corpo “através da alma”.
Então, o alaúde foi esquecido. As pessoas gradualmente perderam sua sensibilidade aos seus finos, delicados e melancólicos sons e voltaram-se cada vez mais para o som monumental da grande orquestra, vindo a preferir continuamente os instrumentos mais potentes. A altamente civilizada e refinada arte de tocar alaúde morreu.
Por fim, nós começamos a redescobrir essa Atlantis musical. Bibliotecas e coleções contém um vasto tesouro da música para alaúde. É provável que nenhum outro instrumento musical possua tão enorme repertório – e compositores modernos estão começando novamente a mostrar interesse nesse instrumento. A qualidade pacífica e equilibrada da delicada música dessa “rainha dos instrumentos musicais” é eterna – ainda hoje, ela tem o poder de nos comover.
A força mágica da antiga música para alaúde
Se nós quisermos entender a Atlantis musical encorporada na antiga arte europeia de tocar alaúde, devemos ir além das técnicas de execução e construção dos instrumentos, das várias formas de tablaturas e das regras de ornamentação. O segredo mais profundo e fundamental é a intenção musical – o mundo espiritual – subjacente às representações escritas. Uma busca por linhas mestras revela citações como a seguinte:
Um alaudista pode conseguir qualquer coisa com seu instrumento. Ele tem influência, por exemplo, sobre as formas geométricas, do quadrado ao círculo; estabelece as relações entre uma estrela e outra e determina a velocidade dos corpos que caem – tudo isso pode ser feito e milhares de outras coisas mais. (Pater Mersene, Harmonie Universelle, 1636)
Essa pretensão parece um pouco ingênua para a mente moderna. A investigação do contexto nos conduz a pensadores da época, tais como Johannes Kepler, Athanasius Kircher e Robert Fludd, que eram mentalmente familiarizados e conscientes de cada uma das outras descobertas científicas. O principal trabalho de Kepler concerne à harmonia das esferas, como descrita pelos pitagóricos. Ele mostra que estas leis são onipresentes na natureza, no universo, no ser físico e espiritual do homem e na música – referindo-se a descoberta de estruturas idênticas na geometria, astronomia, biologia, música e outros campos do conhecimento. Estruturas musicais análogas às formas geométricas (o círculo) e fenômenos astronômicos (os caminhos dos corpos celestes) podem ser representadas no alaúde, e também é possível, por meios de modulação e outros dispositivos, produzir uma analogia musical da quadratura do circulo.
Desde que, como descreve Kepler, a alma do homem entende e reage instintivamente a tais estruturas em virtude de sua natureza divina, deve ser também possível o uso dessas para transformar a consciência humana por meios alquímicos. A descrição de Thomas Mace de uma experiência de iluminação reprodutível através do correto manuseio do alaúde, provém ainda outra peça ao quebra-cabeças. (Musickes Monument, 1676).
Bruxas (witches – um termo que originalmente era aplicado a mulheres dotadas de sabedoria e versadas nas artes da medicina e do manuseio de ervas) também usavam a música para fins medicinais. Uma gravura de De Lancre (O Sabbath das bruxas, 1613) mostra um grupo de bruxas fazendo música, cuja figura central está tocando um alaúde. Seguindo as tradições ancestrais, essas mulheres sábias usavam a música, a dança e outros meios para estimular, em seus pacientes, as forças da vida. A harmonia cósmica, visivelmente refletida nas proporções físicas do homem, tem suas contrapartidas acústicas na antiga música europeia; os efeitos físicos e espirituais que eram usados para acalmar e reassegurar os pacientes, e para produzir neles estados de êxtase, terror ou felicidade.
Em O templo da música (De templo musicae, Oppenheim, 1617), de Robert Fludd, numa apresentação simbólica, feita em forma de tabela, o alaúde é representado como instrumento musical mais importante. A sutileza e as finas nuances tonais que caracterizam o alaúde e sua música indicam que a arte de sua execução era parcialmente dirigida para as práticas meditativas e mesmo mágicas. Todas as civilizações avançadas do mundo fazem menção a percepção progressivamente elevada e a estados de consciência que resultam de exercícios intensivos de meditação e contemplação. As parábolas do Zen Budismo, por exemplo, contém paralelos às ideias que são irracionais em termos de um pensamento lógico (tais como a quadratura do círculo).
Estes são apenas alguns dos muitos pontos que indicam que a música de alaúde também era usada para fins mágicos. Nossa gravação introduz vários tipos de música para alaúde e pretende criar uma noção de como a música pode ser usada para influenciar nossos seres intelectuais, espirituais e físicos.