sexta-feira, julho 10, 2009

A morte de Michael e a surdez do mundo moderno


Acho realmente surpreendente que tanto alvoroço seja causado pela partida de Michael Jackson. O rei do pop, que há tempos já andava esquecido, parece ter se tornado, de uma hora para outra, a figura mais importante de nossa época, de nossa música, um modelo para as futuras gerações. Sua vida pessoal, sempre superexposta, provavelmente não era nenhum modelo a ser seguido por aqueles que desejem cultivar uma mente saudável; sua timidez quando dava entrevistas, contrastava, e muito, com o ídolo que se apresentava sobre os palcos.

Michael certamente se construiu através da televisão. A sua atuação não era apenas como músico, mas era também dançarino, ator, acrobata e o que mais precisasse para agradar aos olhos dos inocentes fãs atenciosamente posicionados do outro lado da tela. Pode-se dizer até que quando se fala dele, o assunto que se sobressai é o de sua imagem, seus clipes sempre inovadores, para não dizer revolucionários; o carisma do menino que cresceu em frente as câmeras certamente foi mantido mais pela sua aparência (mesmo quando ele se tornou aquela caricatura bizarra de si mesmo) do que por suas qualidades musicais.

Mas essa tendência do mundo pop de trazer a imagem para o primeiro plano, tornando-a mais importante que a própria música não foi um privilégio de Michael. Quantas Madonas, Britneys e Justins não o seguiram nessa carreira? E nem se pode dizer que isso foi privilégio do pop. Certa vez ouvi um desses “críticos musicais” dizer que a grande contribuição do Punk foi que a música deixou de ser importante. Bem o mostra um Sex Pistols com suas roupas de boutique; e o que seria dos Ramones sem suas jaquetas de couro?

Nessa aventura da imagem se sobrepondo à música o Brasil também não ficou atrás. O que seria do nosso Roberto Carlos hoje sem o seu terno branco e sua imagem de católico devoto, mesmo que no passado as suas esperanças de conquistas amorosas se concentrassem, inicialmente, mais em um vistoso cadilac do que em um pobre e antiquado calhambeque. Para os mais jovens, teve um Chorão, que conquistou os adeptos do esqueite; e, atualmente, NX Zeros, Fresnos e companhia (i)limitada despedaçam o coração das adolescentes “roqueiras”, ansiosas por usarem maquiagem e parecerem, desculpem-me se a gíria está desatualizada, mais “descoladas”. Ah, e coitado de um Molejo que estava tocando o ritmo certo, na hora certa, mas, infelizmente, com a cara e os dentes errados!

Mas o que perdemos diante do império da imagem no mundo pop? Eu diria que muita coisa.

Nessa rota de ascensão da imagem e decadência da audição, desaprendemos a pensar com os ouvidos. Não se valoriza mais o silêncio, tampouco o barulho. O canto dos pássaros incomoda tanto quanto o escândalo de uma britadeira. Desaprendemos a ouvir música, a compreendê-la, a tentar descobrir algum significado para além das palavras. A música, hoje, ou é alegre, ou é triste. Ou é boa ou ruim. Se for boa, ela será bela. Ou terá alguma utilidade: alegrar, curtir a tristeza provocada por alguma desilusão amorosa; servirá para dançar; ou uma canção de protesto (sendo essas cada vez mais raras).

Talvez especialmente ao brasileiro seja quase insuportável uma música sem letra, sem palavras para se cantar junto. No fim, o bom músico acaba sendo aquele que tem boas letras, ou transmita bons conceitos, visto que nossa sensibilidade também não tende à percepção das sutilezas das formas poéticas de uma letra bem composta. Ressaltemos ainda que essa necessidade de alguma coisa para se cantar junto é tanta, que boa parte da população se contenta com “Ilari, ilari, ilari, ês”, “Bom chi bom, chi bom, bom, bons”, “Tchãs”, “cara caramba cara, cara ôs”, e sabe Deus o que mais a criatividade onomatopeica brasileira poderá inventar!

O século XX não soube valorizar sua verdadeira música, pois ela era incômoda, mas não menos verdadeira. Assim, negamos, ou simplesmente ignoramos, a genialidade de um Arnold Schönberg, um Anton Webern, pois, talvez, suas dissonâncias fossem demais perturbadoras para o público que as ouvissem. Esquecemos também de um Karlheinz Stockhausen, morto em 2007, que não hesitou em inserir em suas composições helicópteros, ruídos de rádio e outras tantas coisas que foram incorporadas à vida moderna.

O novo homem que surgiu no século XX preferiu voltar seus ouvidos à antiga harmonia dos tempos clássicos, mais otimistas com a supostamente ilimitada razão humana; ou ainda deixou-se deleitar com a simplicidade das composições medievais, reavivada com a redescoberta de instrumentos antigos e com a música reconstruída através de laboriosas pesquisas.

Dando as costas à música nova, esse homem evitou se confrontar com sua dissonância interna. Tentou esquecer a lacuna que o separava da natureza e o monstro no qual havia se tornado. Procurou antes inventar uma nova música que o deleitasse, que lhe fosse harmonicamente agradável. Vide, por exemplo, a bossa nova! Embora um Tom Jobim ou um João Gilberto possam, de fato, serem considerados músicos geniais, sua música pretende ser o reflexo de uma harmonia carioca que provavelmente jamais existiu, exceto, talvez, para os mais economicamente abastados.

A música nova perturbou e ofendeu sem proferir qualquer palavra. Por isso, lentamente desaparecem, soterrados pelas falsas harmonias ou pela extrema pobreza criativa, todos os outros gênios que algum dia flertaram com a dissonância. Se há alguma coisa pela qual eu me ressinto com a escola e os grandes meios de comunicação é pelo fato de eles não terem me dado a conhecer figuras como Villa-Lobos, Carmargo Guarnieri e sabe-se lá mais quantos tesouros possam existir sob os escombros do lixo cultural. Assim, o homem moderno matou a música erudita.

A música se esvaziou de sentido. Tornou-se pobre, mero divertimento. Para o senso comum, ser músico não é considerado uma profissão séria; é antes coisa para quem não quer estudar ou trabalhar. A música, mesmo a comercial, pouco a pouco vai desaparecendo da televisão, e, nas rádios, elas lutam contra blocos de propaganda cada vez mais extensos e edições mutiladoras que lhes diminuem o tamanho e destroem sua integridade.

De toda a música sobrevivente só se pode dizer que ela expressa toda a nossa crescente surdez, mesmo que inconscientemente. A música eletrônica, ou o bate estaca repetitivo, como geralmente os mais velhos a chamam, não passa de um reflexo do mundo rotineiro, monótono e caótico que eles mesmos ajudaram a criar e, agora, ao menos auditivamente, rejeitam-no. De outro lado, é também o ritmo frenético que convida a uma comunhão em massa, aos beijos desconhecidos e à alegria barata e efêmera, que necessita de doses constantes para ser reforçada. Lamentável também é o refrão “beber, cair e levantar”, tão fácil de se ouvir através dos potentes auto-falantes de motoristas exibicionistas que circulam pela cidade. Essa música não existe sem o volume em excesso.

Voltando ao Michael Jackson: foi provavelmente o mesmo Império da Imagem, nascente, que cuspiu e enterrou um de seus primeiros ídolos. Michael não pôde lutar contra a doença, a velhice e o esquecimento. Sua vida particular tornou-se pública e conhecemos não só o cantor, mas também, o pai que balança o seu filho na janela de altos edifícios e o homem acusado de pedofilia. Conhecemos uma criatura em constante mutação que, em poucos anos, passou de um jovem de sucesso a uma celebridade excêntrica e doente. Agora, aqueles que se deliciaram com seus escândalos, perdoam-lhe todos os erros e homenageiam o ídolo morto.

O Império da Imagem agradou ao público e corroeu um de seus maiores expoentes. Também nos deixou mais surdos e insensíveis. E o que aprendemos com isso?


Esta é só uma reflexão.

2 comentários:

Vinício dos Santos disse...

Concordo com você que as pessoas se ligam muito mais a imagem hoje do que a musica em si, porque as duas estao cada vez mais juntas. Uma vez mesmo eu vi uma declaração do Roger dizendo que nos anos 80, eles só tinham o rock e nenhuma produção artistica; nos 90, o rock e a produção empataram, e nesse século deixaram o rock de lado e se concentraram só na aparencia.

No fim das contas, a música - ou pelo menos a produção musical recente - vai ficando descartável como todos os modismos anuais.

Mauro disse...

Mas Thriller continua sendo o album mais vendido de todos os tempos e o que Britney e Justin imitam hoje.

Impossível negar sua vivacidade na música.

Se prender no espaço que você parece ficar, de uma música erudita, é ser tão ignorante quanto esses que você menciona não suportar a música do século XX.

Há pianistas que conheço que são competentíssimos que odeiam se referir a música erudita com essa expressão. Justamente por trazer nela a idéia de que essa música é para poucos. Pelo visto suas idéias parecem também centradas nesse condicionamento. Se quer que a música seja um movimento de massas, fale com elas. Não fale com preconceito de um ou outro estilo. Saiba que sempre alguem talentoso sairá deles.

Música não tem que possuir sentido algum e sim emoção. Fluir de emoção, sentimentos. Se são só instrumentos ou voz também, tudo faz parte da canção.

Todo artista vive o contraste do talento e de sua imagem. E se fossemos fazer comparações, a música erudita também contém muitas histórias como Michael Jackson. Compositores bêbados, loucos, mas geniais. Na época não seria o caso da imagem desses grandes compositores também pesar em sua obra?

A imagem passa e apodrece, o que sobra é musica. Seja a musica clássica ou Billy Jean.

Michael Jackson era preto e morreu branco, Elvis morreu gordo, Hendrix em seu próprio vómito e assim vai.

Negar a habilidade de fazerem música é negar parte da própria música.

Não pense que música é só feita de maestros. Seu gosto pode tender para isso, claro. Mas negar outras vertentes da música é, ao meu ver, perder boa capacidade crítica.