Passando outro dia pela recém reformada fachada da Igreja Matriz, fiquei pensando sobre as probabilidades de que algum dia esse gigante arquitetônico fosse concluído. Diante de algumas recentes reformas na cidade, não julguei de todo improvável que tal empreitada fosse levada a cabo, e que o universo araraquarense estivesse andando em um sentido pouco habitual, isto é, para frente. Não sei ao certo se é uma nova configuração celeste, intervenção divina, evolução ou mero acaso. O fato é que algo realmente pode estar mudando.
Tudo parece ter começado no dia em que resolveram reformar a rua dois. Até hoje há calorosas e infrutíferas discussões sobre a circulação de automóveis naquele local. Entretanto, apesar calçada nova e tudo, não é mentira que a rua continua feia, a diferença é que, onde antes mal passavam pedestres e carros, agora pelo menos sobre as próprias pernas é possível transitar.
Mais recentemente, o alvoroço se deu na rua cinco, o Bulevard dos Oitis. Houve até uma patética “sessão de fotos” para retratar a beleza que seria perdida com a reforma. Para não falar o trabalho que deve ter sido conter as dezenas de dedos enrugados que insistiam em arremessar descuidadamente os paralelepípedos “ao seu local original”, ou seja, no meio da rua. Contudo, a despeito de tantos esforços para conter as obras, elas foram concluídas. E, o mais importante, nenhuma árvore foi ferida durante as reformas.
Também não será sem um certo aperto no coração que nos despediremos dos famigerados trilhos que cortam a cidade. Depois de tantas e tantas campanhas eleitorais terem se ocupado com o tema, e a mente araraquarense ter se dado ao luxo de criar as mais maravilhosas fantasias a respeito do novo espaço a ser ocupado, parece que hesitamos em deixá-los ir, pedimos aos trilhos para que fiquem, literalmente, entre nós, assim, nos dividindo por mais um pouquinho de tempo, tão bonito!
Mas qual é não é o meu espanto ao notar uma movimentação estranha, em frente à Igreja Matriz. Já me tinha sido bastante difícil de acreditar que a reforma da fonte se dera sem maiores percalços; e agora, estariam querendo finalmente terminar a igreja? Ou será que os meus sentidos se enganaram?
Deixando minha imaginação um pouco às soltas, creio que deve haver chegado à cidade algum arquiteto desavisado ou meramente alguém imbuído de espírito empreendedor, como é moda nesses tempos, que não tenha se contentado com o aspecto inacabado de nosso magnífico monumento. Chegando à cidade dirigindo seu carro bi-combustível, modelo 2009, nosso empreendedorista não deixou de notar a maravilhosa cúpula que se destacava em meio a tantos outros prédios, com suas janelas quadradas, monótonas e pouco interessantes. Mesmo sem conhecer o caminho, deixou-se guiar pelo gigante arquitetônico do mesmo modo que, talvez, em tempos antigos, três reis se deixaram guiar ao lugar do nascimento de Cristo.
Contudo, que decepção ao se aproximar do edifício. Além do seu aspecto inacabado, com tijolos nus pela maior parte de seu corpo e contrastando com a fachada rebocada, o gigante já mostrava sinais de deterioração. Em um canto cresciam – à revelia das mãos humanas que, em seu árduo trabalho, acreditavam construir mais uma morada para o Santíssimo – um ramo de plantas, já bem vistosas, que até provocaria um bonito contraste entre o verde de seus ramos e o alaranjado pálido dos tijolos, caso não fosse indesejada. Os degraus, já gastos, e alguns buracos aqui e ali, também não causavam melhor impressão.
Olhou em volta e deu de cara com aqueles vasos assustadores, adornados com caretas chifrudas, sempre a sorrir maliciosamente. Logo atrás de si, estava a fonte, visivelmente recém reformada, e uma estranha caixinha, da qual emanava uma música nostálgica, que lembrava dos tempos de antigamente, quando as pessoas costumavam despender algum tempo de suas vidas nas praças, buscando alguma convivência com outros seres da mesma espécie. Imponente, sobre a fonte, estava pousada uma grande águia, cujo o bico, conforme reza a lenda, aponta para o lugar onde, outrora, havia uma cadeia, e episódios não muito bonitos de se lembrar se passaram por lá. Mas nosso homem empreendedor nada sabia daquelas histórias.
Como as portas da igreja se encontravam abertas, ele resolveu entrar e se deparou com aquela divina imagem estampada na parede. Não era possível escapar daquele Cristo, vivo e enorme, sem os sinais do flagelo e sofrimento com os quais costuma ser retratado. O rapaz sentiu-se tocado diante da vibração celestial que se impunha sobre o interior da igreja e criou a firme convicção de que algo deveria ser feito para que uma obra humana já tão antiga, fosse, enfim, concluída, dando completude e integridade a um portal de união entre o Céu e a Terra.
No dia seguinte, começou seus esforços para a conclusão da Igreja, procurando todas as autoridades responsáveis. Porém, não sabia dos riscos que poderiam ser causados por suas mais nobres intenções. Há ainda, sob a Igreja, aquela serpente gigantesca, que prometeu deitar tudo abaixo quando a construção estivesse terminada? Tendo vindo de outra cidade, o rapaz nada sabia a respeito de tais lendas, e aqueles que desde o nascimento aqui residem, ou dela se esqueceram, ou tornaram-se racionais e práticos demais para darem ouvidos a histórias da carochinha.
Infelizmente, parece que as obras se detiveram apenas sobre a fachada. Logo uma obra dessas que, pela altura a qual se elevaria, nunca iria contar com os mesmos inconvenientes que tiveram, por exemplo, a reforma da rua cinco. Porém, com tantas mudanças ocorrendo numa cidade de fama tão conservadora, em tão curto espaço de tempo, não deveria ser de se admirar que um jovem estudante mais esperançoso se entregasse a devaneios muito mais belos que um estádio de futebol.
Essa crônica foi escrita em uma quarta-feira, 10 de junho de 2009. Infelizmente, os andaimes já foram retirados e, ao que parece, a Igreja não será mesmo concluída.