quarta-feira, março 07, 2012

O homem que veio depois do cavaleiro da quimera

Como estudioso da obra de J. R. R. Tolkien, às vezes, para não dizer sempre, fico perplexo ao notar como algumas obras e alguns autores vieram a se tornar um paradigma da arte praticamente insuperável diante da academia e até mesmo autores renomados a ponto de cegar esses mesmos para o que há no restante do mundo. Mais triste que isso é notar que jovens, já muito cedo, vestem o terno da seriedade e como burocratas insensíveis agarram-se ao ideal vanguardista e continuam indefinidamente proclamando a estética do barulho, do choque e do escândalo - pior, acreditando em tudo isso como se realmente chocassem ou escandalizassem ainda...

Havia uma festa de gente importante, da mais alta classe, todos muito cultos e de espírito elevado. A festa ocorria num bunker de vidro, no meio de uma cidade destroçada, mas tudo com muito luxo e riqueza. A entrada se dava por uma porta relativamente estreita, para depois o convidado se deparar com um salão imenso, onde as pessoas conversavam sobre os mais variados assuntos, principalmente àqueles relacionados às elevadas atividades cotidianas, que eles tão pouco conheciam. De fato, era uma festa em nome da liberdade, da consciência humana e, sobretudo, uma comemoração dos novos tempos que estavam por vir. Assim, celebrava-se, no mais alto e refinado estilo, um futuro da realização plena do homem, livre de normas e convenções, livre das pressões religiosas e sua moral arcaica. Só estavam na festa aqueles dispostos a quebrar regras, os inovadores e visionários - bem como seus admiradores mais entusiasmados. A figura principal da festa ainda não havia chegado, um homem muito culto, que atendia pelo nome de James e prometia uma entrada triunfal.

Rufaram os tambores e James entrou montado em sua quimera com patas de avestruz, cabeça de homem, asas de morcego e um corpo minúsculo de sapo, de modo que James, para não cair, deveria se agarrar firmemente aos cabelos da cabeça de homem, cujo rosto, já feio e deformado, contorcia-se de dor e vomitava uma gosma cinzenta, de modo que a cada golfada da medonha figura era possível vê-la esticar uma língua comprida e bifurcada. O cheiro de vômito incomodou a todos, mas essa era a grande novidade; era para causar choque é claro. E, desde que entendida a mensagem, todos aplaudiram.

James escorregou pelas costas lisas de sapo de sua montaria e, com orgulho, deu uns tapas confiantes nas fortes coxas de avestruz, ao que a cabeça de homem se virou irritada, fazendo respingar as gotas do vômito cinzento que haviam ficado em sua barba. James com humor explicou que no dia anterior forçara a criatura  a comer dezoito jornais de domingo, mais uma edição em capa dura do Quixote, outra da Comédia, mais um volume com o melhor do naturalismo que a França já havia produzido. O sábio irlandês fizera tudo descer goela abaixo com uma boa cerveja, de tal modo que a ressaca lhe fazia botar para fora agora a mais bela poesia já vista na terra, no céu e no inferno, tudo, é claro, misturado com uma boa dose de loucura, revelada estrategicamente a partir do subconsciente, e cotidiano, afinal, o homem comum e sua vida medíocre e insignificante eram o assunto mais elevado e freneticamente discutido do momento. A criatura continuava a vomitar e visivelmente sofria. Qual é o seu nome, perguntaram, Ulisses, ele respondeu...

Ulisses era diferente de tudo o que já se tinha ouvido falar, e capengava esbarrando em todos, que logo já não se incomodavam com o cheiro do vômito e o modo como ele respingava em suas roupas de gala. Ele andou trôpego um tanto pelo salão e ao cuspir a última lasca do elmo de Mambrino, endureceu e transformou-se numa estátua horrenda! Aos poucos, ele esbranquiçou-se e ficou da cor do mármore, ao que todos aplaudiram e concordaram que dificilmente qualquer outro artista poderia superar aquela obra de arte!

A festa continuou e o Sr. Wilson não conseguia desgrudar os olhos da estátua e passou a perseguir James como um cãozinho fiel. Muito se comia e bebia na festa dos seletos homens comuns de refinado gosto. Ali se encontrava, de fato, não sangues azuis, mas a nata do pensamento humano, que se embriagava ao ver em cada poça de vômito de Ulisses a mais pura poesia.

A festa correu noite a dentro e o dia chegou sem ser notado, pois os escombros impediam a passagem da luz do sol. Mas, de que importava? Não faltava comida nem bebida, ali nada era proibido e a regra era quebrar regras. Mais de uma vez perguntaram a James sobre o sexo de Ulisses, o que sinceramente lhe constrangeu. Como assim? O sexo de Ulisses? Claro, uma figura magnífica dessas deve ter um sexo! Afinal, sexo era moda, prazeroso... Mais de uma vez os trajes de gala haviam sido despidos e recolocados novamente, sem a necessidade de buscar cantos ocultos no bunker de vidro, pois não havia cantos assim ali.

Ora, o sexo de Ulisses? Alguém se riu ao fundo, agora estava óbvio porque Ulisses fazia caretas tão horrendas! James ficou sério, pois Ulisses não deveria ser objeto de zombaria, e disse que era evidente o sexo da quimera, bastava examinar seu corpo de sapo. Um biólogo presente, mas enorme admirador das artes concluiu que, apesar da cabeça de homem, Ulisses era, de fato, uma fêmea, e provavelmente se reproduziria por fecundação externa. Externa? Ulisses não fazia sexo? Não podia fazer sexo? Wilson, ao notar o constrangimento do mestre, concordou com o homem das ciências, mas ressaltou que o mais importante era a visão inspiradora que James, através de Ulisses, provera-lhes. Em verdade, porém, Ulisses não tinha sexo. Nem fora castrado. Era estéril desde a concepção.

Do lado de fora, uns homens contavam histórias fantasiosas e removiam os escombros da guerra e da civilização. John estava entre os mais quietos, sempre pensativo. Frustrara-se ao chegar ao topo da pilha de escombros e não conseguir ver o mar. Só restava portanto a ele e seus companheiros, remover os escombros e tentar reconstruir a cidade. Jack era seu companheiro mais entusiasmado e barulhento, na metade da pilha de escombros ele já havia contado sete histórias completas, enquanto John só havia contado uma história e uma anedota. Seus outros companheiros ajudavam e davam opiniões sobre as histórias - e frequentemente falavam de pedras também. Das pedras às palavras, das palavras às pedras, lentamente, os homens chegaram ao bunker de vidro. A festa foi tocada por um raio de sol, o que incomodou muita gente. Quem eram aqueles homens e o que eles faziam ali? Não eram convidados! Wilson detestou-os. O sol tornara a feiura de Ulisses mais evidente.

Eventualmente, James morreu, mas a festa em torno de sua obra continuou. De repente descobriu-se um prazer especial em buscar citações no vômito da criatura, que nunca secava. Os dezoito jornais de domingo tornavam a busca ainda mais difícil e emocionante. Os eruditos, já sem um pingo de sobriedade, logo tiraram as roupas e mergulharam naquelas poças. Eventualmente também, novas pessoas eram admitidas na festa e os novos convidados imitavam os outros que aos poucos iam envelhecendo e morrendo. Os cadáveres dos mais importantes, como o de James, eram embalsamados, enquanto o dos outros eram devorados, triturados, esmagados e utilizados das mais diferentes formas. Misteriosamente, a comida e a bebida que alimentava seleta e pequena multidão nunca acabava. Os garçons exaustos morriam e eram substituídos sem que sequer fosse notada a mudança dos rostos dos que serviam.

A última camada de escombros foi a mais difícil de remover, mas ao removerem a última pedra, os homens de fora notaram que a enorme caixa de vidro estava cheia com a fumaça de cigarros, de modo que, quem estava de fora podia apenas ver vultos fantasmagóricos se movendo dentro da festa. Em alguns lugares haviam feito fogueiras para produzir mais fumaça e, assim, tentar tapar a visão do mundo de fora e bloquear a incidência direta da luz solar. O silencioso John, àquela altura, tinha encontrado sua boa história e depois de revê-la centenas de vezes em sua mente, pensou que, talvez, as pessoas da festa também gostassem de sua história - embora em seu íntimo considerasse improvável.

Sem avisar, John abriu a porta e uma lufada de ar clareou o ambiente. Raivosos, empurraram-no para fora e pegaram o mais novo convidado da festa, um garoto arrogante de dezoito anos, para alimentar uma das fogueiras e produzir mais fumaça. Sua idade é a mesma que o número de jornais de domingo que Ulisses engoliu, portanto, você é o escolhido, disseram entre risos medonhos. John caiu de costas e suas mãos tocaram a terra, seus pulmões se encheram de ar puro e, como anoitecia, ele viu surgir no céu a estrela vespertina. Jack o olhou e sabia que John tinha algo a dizer. Porém, incomodado com a afronta ao amigo, perguntou o que poderia fazer. Calma, Jack, respondeu. John via brotar no solo o primeiro verde, os primeiros sinais de vida depois da destruição. Eu tenho uma história disse finalmente...

Um comentário:

Natália Shmidt disse...

Olá André Luiz,
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